Conflito entre fé e medicina: recusa da transfusão de sangue por motivos religiosos

12/08/2024 | Outro autor

A questão da negativa de transfusão de sangue por parte das Testemunhas de Jeová é um tema complexo que envolve uma tensão entre a autonomia do paciente e a responsabilidade médica. Este grupo religioso segue rigorosamente a interpretação bíblica que proíbe o consumo de sangue, estendendo essa proibição às transfusões sanguíneas. Para as Testemunhas de Jeová, aceitar uma transfusão de sangue seria uma violação direta dos mandamentos divinos, colocando em risco sua salvação espiritual.

 

Por outro lado, os profissionais de saúde têm um dever ético e legal de preservar a vida e a saúde de seus pacientes. Este dever pode entrar em conflito direto com a recusa de uma transfusão de sangue, especialmente em situações em que a vida do paciente está em risco e a transfusão é considerada essencial para a sobrevivência. Essa situação gera um dilema ético significativo para os médicos, que precisam equilibrar o respeito pela autonomia do paciente com sua responsabilidade de fornecer os melhores cuidados médicos possíveis.

 

A legislação e a jurisprudência variam em diferentes países e contextos quanto ao manejo desses casos. Em muitos lugares, o direito à autonomia do paciente é fortemente defendido, e a recusa de tratamentos, mesmo que potencialmente salvadores, deve ser respeitada se o paciente estiver em pleno uso de suas capacidades mentais e for capaz de tomar decisões informadas. Nestes casos, os médicos são obrigados a respeitar a decisão do paciente, mesmo que isso vá contra seu julgamento clínico. No entanto, essa situação torna-se mais complicada quando o paciente é uma criança ou não tem capacidade para tomar decisões, onde os pais ou responsáveis legais podem recusar o tratamento em nome da criança, com base em suas crenças religiosas.

 

Nessas situações, o Estado pode intervir para proteger o interesse da criança, argumentando que a saúde e o direito à vida prevalecem sobre a liberdade religiosa dos pais. Tribunais, em várias ocasiões, ordenaram a realização de transfusões de sangue em crianças contra a vontade dos pais, com o argumento de que o dever do Estado de proteger a vida e o bem-estar de menores é superior ao direito dos pais de exercer sua religião em nome dos filhos.

 

Do ponto de vista médico, é crucial que os profissionais de saúde estejam bem informados sobre as alternativas à transfusão de sangue que são aceitas pelas Testemunhas de Jeová, como a utilização de expansores plasmáticos, medicamentos que estimulam a produção de glóbulos vermelhos, ou técnicas cirúrgicas que minimizam a perda de sangue. Muitos hospitais desenvolveram protocolos específicos para lidar com pacientes que recusam transfusões, assegurando que todas as opções disponíveis sejam discutidas e que o paciente ou seus representantes legais estejam plenamente informados sobre as consequências de sua decisão.

 

Adicionalmente, é fundamental que os médicos estabeleçam uma comunicação clara e empática com os pacientes e suas famílias, reconhecendo e respeitando suas crenças, enquanto explicam as implicações médicas de recusar uma transfusão. O diálogo aberto e a confiança mútua são essenciais para se alcançar um entendimento comum sobre os limites e as possibilidades do tratamento, buscando alternativas que respeitem a crença religiosa do paciente sem comprometer sua saúde.

 

Em termos de responsabilidade médica, a recusa de transfusão não exime os profissionais de saúde de suas obrigações éticas e legais. Eles devem documentar cuidadosamente todas as discussões e decisões, garantindo que o paciente ou seus representantes estejam cientes dos riscos envolvidos. Além disso, é importante que os profissionais de saúde consultem comissões de ética, assessoria jurídica, e, se necessário, busquem ordens judiciais para guiar suas ações em casos de conflito, especialmente quando a vida de uma criança está em jogo.

 

Em conclusão, a negativa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová coloca os médicos em uma posição desafiadora, onde devem equilibrar o respeito pelas crenças religiosas com sua responsabilidade de salvar vidas. A chave para lidar com essa situação está na preparação, comunicação e, quando necessário, na intervenção legal, sempre visando o bem-estar do paciente e o respeito aos seus direitos e crenças.

Por Michelle Wernèck- Advogada

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